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Vivo com os abutres

 

Uma suposta última foto de seu avô, com uma mensagem enigmática de despedida no verso, é o ponto central da pesquisa atual de Gus Bozzetti. Vivo com os abutres é o seu primeiro capítulo e, também, um convite para acompanharmos uma construção poética em desenvolvimento. Aqui, o artista apresenta ao público os elementos centrais de sua inquietação: a construção, ou a invenção, da verdade a partir da memória. Um caminho em processo, as primeiras peças de um complexo quebra-cabeças.

Na foto, que não vemos, Constantino Bozzetti, patriarca da família Bozzetti, que aportou em Rio Grande vindo da Itália, posa, com uma altivez tímida, em um banco da Praça Almirante Tamandaré. Conta a história que esta era uma prática recorrente, uma tentativa de reconquistar sua esposa, que o expulsou de casa por conta do alcoolismo, com fotos de Lambe-Lambes e poesias. O destino de Constantino, que um dia havia sido carpinteiro e desenhista, ninguém sabe ao certo, mas o que se especula é que ele teria vivido na praça até o final de seus dias e que essa foto seria o seu derradeiro adeus. Poucos da família conheceram ou conviveram com ele. Sua existência, entre os Bozzetti, passou a ser uma espécie de mito familiar que tudo embasa e justifica.

Vivo com os abutres é um mergulho nesse passado para encontrar, ou talvez criar, aquilo que constitui o presente de Gus. Nos desenhos, é possível identificar uma silhueta borrada, de onde irradia essa história cheia de lacunas e heranças, físicas e psíquicas. A ela misturam-se outras duas figuras: um autorretrato com feições cadavéricas – uma espécie de personificação da morte e um indício da melancolia presente na família – e um terceiro corpo masculino, que simboliza o encontro entre as gerações. Ao preto do nanquim somam-se as manchas de tinta aguadas, condensando com a matéria as camadas da passagem do tempo e dos relatos que foram se sobrepondo, configurando caminhos e possibilidades para compreender a vida e a influência desse avô desconhecido. Em um dos desenhos maiores, uma espécie de diagrama aponta para onde este trabalho deseja chegar: é, mais do que memória e afeto, uma investigação sobre a melancolia e a constituição do ser. A pesquisa que Gus começa aqui é sobre procurar, através do fazer poético, aquilo que o torna quem ele é.

Inverno, 2019

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Texto para exposição individual de Gus Bozzetti | Calafia Art Store, Porto Alegre, julho 2019

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