Denúncia poética
Ver o Gustavo Assarian pintando é acompanhar o processo da imagem não apenas se formando, mas tornando-se mais nítida a cada minuto que passa. Um pouco como quando voltamos do oftalmologista com as pupilas dilatadas e com o passar do tempo as imagens vão se redefinindo, recobrando seu brilho e sua nitidez.
Assarian tem método no que ele faz. O trabalho começa muito antes de chegar à parede — ou ao papel, meio geralmente utilizado pelo artista. A autorrepresentação é uma marca da sua poética. Tudo nasce de uma cena ou momento traumático vivido por ele: assalto, abordagem policial, doença, briga, e a lista segue. Momentos que o marcam e precisam ser elaborados. Assim começa um trabalho, pelo processo de reavivamento de memórias, como ele chama. Primeiro ele faz um esboço, em seguida solicita a ajuda de outra pessoa para reencenar o fato e fotografar. A partir das fotografias e de suas lembranças é que nasce a cena a ser desenhada. O local em que o fato ocorreu não vemos. No suporte, ele se faz presente pela subtração, são as zonas em branco que, apesar de nos remeterem a zonas de ausência, de espaço ou de respiro, deixando as figuras soltas no espaço, criam a coerência compositiva.
Na parede do Instituto Ling temos uma cena de violência. As duas figuras das pontas, representadas por autorretratos, colocam o artista nos dois lados do acontecimento, aquele que sofre a violência e aquele que a pratica. Assarian comenta que isso é também uma forma de se colocar no lugar do outro e a partir desse lugar pensar como o outro enxerga a sua imagem. No centro da composição, vemos dois homens-porcos, de terno e gravata, com semblantes tranquilos, até simpáticos. Aliás, à primeira vista, a obra de Assarian talvez capture o espectador pela sua beleza, precisão, habilidade manual e certo humor. É difícil não se impactar pelos claros e escuros, pelos contrastes e noções de profundidade e volume. Portanto, é mesmo aos poucos, conforme o olhar percorre a parede, que é possível perceber outros elementos, como o que o artista nomeia de indicativo de problema — o objeto preto, pontiagudo e longo, empunhado por um dos homens-porco. Pode ser um cassetete, pode ser algo perfurante, pode ser o mastro de uma bandeira. Cada olhar fará a sua leitura conforme perceber os outros símbolos que ali estão.
A potência do seu trabalho emerge desse detalhamento e atenção. “Meu trabalho é uma denúncia”, afirma o artista. Eu digo que são várias, a depender da consciência e disponibilidade de quem estiver diante da parede em encontrar e refletir sobre os seus muitos significados. Não há aqui apenas encantamento técnico, aptidão extrema em retratar figuras de forma hiperrealista. Há muito mais. Há um Brasil que precisa urgentemente refletir sobre suas figuras de poder, sobre seus preconceitos, sobre suas populações marginalizadas e encarar seus traumas para, assim como o artista, elaborá-los e superá-los, mas sem jamais esquecê-los.
Inverno de 2022