Arrisco dizer que muito daquilo que nos cerca hoje, seja no âmbito dos espaços físicos – essa coisa um pouco padronizada, modelada conforme o gosto do tempo, os objetos, a decoração –, seja nas questões mais subjetivas – excesso de estímulos, de mensagens, de imagens e de referências –, está presente na pintura de Talita Hoffmann. Fosse apenas isso, suas pinturas seriam uma sobreposição desordenada. Mas, não são. Talita tem um filtro, que é aquilo que a faz ser artista, e tem humor. Ela tem uma certeza, por certo subjetiva, mas é o que a permite trabalhar com segurança. É difícil de colocar em palavras, mas está lá, fazendo o seu papel a cada imagem que a artista observa e resolve tornar pintura.
Para a construção da parede que faz parte do projeto Ling Apresenta, Talita, que geralmente parte de um banco de imagens que ela coleciona, resolveu trabalhar de forma diferente. Convidou o público a colaborar enviando fotografias feitas nas dependências do Instituto Ling. Poderia ser qualquer imagem: um detalhe, uma parede, um canto escondido, um revestimento, um plano aberto, enfim qualquer foto que revelasse um pedaço do próprio lugar. A pintura seria construída, então, a partir dessas imagens.
Com a parede em branco, começam as escolhas. As fotografias são transferidas por um processo muito simples. Projetor ligado, imagem projetada, Talita vai riscando com um lápis, escolhendo as partes que quer mostrar. Aí está um ponto de atenção: não é porque recebeu a fotografia, que ela precisa ser usada. Ela seleciona aquilo que a interessa enquanto artista, que faz sentido dentro da composição que ela deseja criar. Há, o tempo inteiro, um pensamento pictórico e compositivo que se impõe, que direciona as escolhas e determina o que entra e como entra na parede. Assim, uma forma pode ser subitamente interrompida. Uma linha que descia reta, desenhando uma janela, de repente se transforma em pequenas ilhas.
Das linhas de lápis, Talita passa para a tinta. Tudo começa pelo fundo. Grandes campos de cor que preenchem perspectivas, que levam o olhar e constroem a primeira camada da pintura. São áreas bem delimitadas, com formas específicas, que dialogam com as imagens que virão por cima. Conforme a pintura avança e a parede se completa, vários ângulos, arestas, objetos, mobiliário e elementos arquitetônicos vão tomando conta do espaço. De uma forma, o olho salta para a seguinte. A artista encaixa uma quina de parede com o início de um corrimão, o fim de um teto com o começo de um chão.
Essa camada, mais gráfica, de desenhos feitos com linhas, sobre as manchas de cor do fundo, comunica também sobre a trajetória de Talita enquanto designer gráfica e ilustradora. É, para mim, precisamente aqui que o humor característico das outras obras da artista aparece: na escolha desses detalhes, dos objetos e em suas sobreposições e relações. Há, em toda a sua composição, diversos caminhos para o observador percorrer.
As imagens recebidas, que não tinham uma delimitação temporal – poderiam ser de qualquer época –, compõem, sem querer, uma espécie de histórico do Instituto Ling. É possível identificarmos obras de arte que já passaram pela galeria e outras que por lá vivem, como parte do acervo permanente. Em um canto, o olho atento encontrará uma meta-obra, um canto da parede fotografado e enviado para a artista, e que de imagem da obra voltou a ser obra.
Em um primeiro momento, relacionei tudo isso a uma ideia de labirinto. Aos poucos, fui me dando conta que a poética de Talita fala, para mim, muito sobre o nosso jeito de viver. Pulando de uma coisa para outra, de um ambiente para outro, sobrepondo conversas e assuntos, passando de uma janela para outra no computador, colecionando abas e referências, imagens – físicas, virtuais e imaginadas –, tudo permeado pela velocidade acelerada do cotidiano.
Porém, a pintura de Talita não é acelerada. Pelo contrário, ela desacelera o tempo com suas composições. Requisita a nossa atenção, encurrala o olhar em um acúmulo de formas. Só parando diante da obra podemos esmiuçar aquilo que forma o todo. Eu encontrei um pouco de mim mesma, talvez o espectador encontre outras coisas.
Primavera, 2022